A Igreja Católica está em sínodo
Em outubro de 2020, o papa Francisco convocou a 16.ª Assembleia-geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Trata-se de um organismo de corresponsabilidade episcopal, instituído por São Paulo VI em 1965 para a consulta regular sobre questões atinentes à vida e à missão da Igreja. Desta vez, Francisco inovou na maneira de promover a assembleia sinodal, pedindo que, além dos bispos, fossem ouvidos também os outros membros da Igreja nas comunidades locais das dioceses, Conferências Episcopais e organismos continentais da Igreja. Houve até uma consulta envolvendo internautas, sobretudo jovens, sobre suas relações com a Igreja e o que dela esperam.
O tema da assembleia – Igreja sinodal: comunhão, participação e missão – refere-se à própria Igreja, compreendida como “povo de Deus a caminho” de sua meta. Como realidade viva e dinâmica, inserida na história dos povos e das pessoas, a Igreja tem a face desses povos e grupos e, ao mesmo tempo, transcende as particularidades de cada um deles. Embora tenha feições e expressões históricas, a sua realidade não se esgota naquilo que, circunstancialmente, a representa e visibiliza.
Por meio deste sínodo, o papa chamou a Igreja a ir além de certo apego a formas e estruturas históricas, dando maior atenção à sua realidade profunda e à sua missão, que dão sentido e razão de ser à sua existência, como a comunhão de todos os membros da Igreja a partir dos laços da fé, dos bens espirituais, do amor divino e fraterno, da missão comum a todos os seus participantes, embora realizada de múltiplas formas. As divisões de todo tipo fazem grande mal à Igreja e enfraquecem sua missão.
A compreensão da Igreja como instituição clerical, bastante difundida, foi fundamental na escolha do tema deste sínodo. Essa maneira de ver a Igreja a fere de morte, conforme sugeriu o próprio papa Francisco em certa ocasião. Vista como um organismo “do clero”, a Igreja fica empobrecida e perde a preciosa vitalidade e dinamismo dos membros, que não são clérigos, que acabam sendo vistos como meros assistidos e beneficiados pela Igreja. Essa visão, no entanto, é distorcida e não corresponde à verdadeira natureza da Igreja, segundo a qual todos os batizados receberam a mesma dignidade fundamental no Batismo e têm parte na Igreja. Todos participam do mesmo tesouro da fé e do bem espiritual da Igreja. Francisco deseja que a Igreja reflita e busque a superação da concepção e da prática clericalista.
A tomada de consciência dessa distorção, sem dúvida, já é importante para que a Igreja volte àquilo que ela é chamada a ser por vontade de seu Fundador: o povo dos discípulos e missionários de Jesus Cristo, suas testemunhas, que caminham na fé, no amor e na esperança da realização plena das promessas de Deus. Na Igreja, cada membro é chamado a desenvolver o seu dom, colocando-o a serviço da vida e da missão da própria comunidade eclesial. Os clérigos desempenham uma missão essencial na comunidade da Igreja, mas eles não são mais Igreja que os demais batizados nem são senhores da Igreja. Ao contrário, devem estar a serviço de Deus e da comunidade dos fiéis.
O clericalismo levou grande parte dos membros da Igreja a uma condição de passividade e descompromisso, de meros receptores dos benefícios espirituais e religiosos oferecidos por ela, ou seja, pelo clero. As paróquias, templos, instituições eclesiásticas e obras religiosas, por vezes, são vistos como pontos de repasse de produtos religiosos, úteis ou interessantes para certas circunstâncias da vida, sem vinculação comunitária. E a própria Igreja corre o risco de se transformar numa espécie de agência de bens religiosos, que podem ser buscados mesmo sem nenhuma vinculação de fé nem envolvimento com sua missão. A Igreja de Cristo, porém, não pode ser reduzida a uma rede de produtos e negócios religiosos. Ela é uma comunidade de fé e vida cristã, de testemunho do Evangelho e serviço às pessoas e ao mundo.
O tema do sínodo retoma a questão fundamental da participação na Igreja: todos os seus membros são chamados a “caminhar juntos”, mantendo-se unidos pelos laços sobrenaturais da fé, esperança e caridade, interessando-se pelo bem dos demais. Numa Igreja participativa, os dons que Deus concede a cada um devem ser postos a serviço dos demais e a serviço da missão comum de toda a comunidade dos fiéis. Todos têm parte no bem da fé, da vida cristã e da herança espiritual, sem exclusão de ninguém, santo ou pecador que seja. E todos são chamados a progredirem na conversão e no caminho que leva a Deus.
A assembleia sobre a “Igreja sinodal” será celebrada em duas etapas: em outubro de 2023 e em outubro de 2024. Entre as duas etapas, haverá novos momentos de participação e de amadurecimento das propostas sinodais nas Conferências Episcopais e organismos continentais da Igreja. Francisco convida ao discernimento e à oração, recordando sempre que o principal agente da Igreja é o Espírito Santo de Deus.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 10 de junho de 2023