Mensagem do Arcebispo › 12/07/2023

A liberdade de crer

A liberdade religiosa consiste sobretudo na ausência de coação para praticar ou não praticar uma religião, para manifestar ou deixar de manifestar convicções e atitudes religiosas. Nos Estados laicos, essa liberdade é assegurada a todos os cidadãos e o próprio Estado não impõe nem impede a prática religiosa, mas a protege e garante aos cidadãos.

Pareceria questão evidente e resolvida, mas a realidade não é tão simples. No mundo, atualmente, bem 2/3 da população vivem em países onde a liberdade religiosa é desrespeitada e mais de 200 milhões de pessoas não são livres para manifestarem a sua fé. Em mais de 80 países o Estado não garante esse direito básico. E são 65,6 milhões as pessoas em fuga de perseguições religiosas pelo mundo, à procura de refúgio, onde viver com liberdade a própria fé. Cerca de 16 milhões destas abandonaram países do Oriente Médio.

Os dados fazem parte do relatório sobre a liberdade religiosa publicado recentemente pela Fundação Pontifícia Aid to the Church in Need (Ajuda à Igreja que Sofre). Em mais de 40 países, a perseguição volta-se sobretudo contra os cristãos que são discriminados ou oprimidos, impossibilitados de manter templos e estruturas eclesiásticas ou de garantir uma existência humana digna. Igrejas são queimadas, objetos de culto e lugares sagrados são profanados e, em muitos casos, a conversão à fé cristã pode ser punida com a pena de morte.

A perseguição religiosa aos cristãos avança em vários países da África. Na Nigéria, eles sofrem uma perseguição violenta que, entre outros horrores, inclui o sequestro de meninas para serem escravas. Ser sacerdote tornou-se arriscado: apenas em 2022, os sacerdotes sequestrados na Nigéria foram 28. Em vários países do Oriente Médio os cristãos são obrigados a emigrar, abandonando tudo o que possuem para se livrar da perseguição e da discriminação religiosa. Na Ásia, minorias cristãs são perseguidas pelo autoritarismo estatal e o nacionalismo religioso em vários países, como em Mianmar, China, Índia, Coreia do Norte, Vietnã e Paquistão. O Afeganistão é tido como o país mais perigoso do mundo para um cidadão cristão.

A perseguição religiosa pode tomar formas bastante diversificadas e nem sempre ela acontece de maneira aberta e ostensiva. Pode consistir no desrespeito e desprezo à fé alheia, na maneira impositiva de propor a fé, no cerceamento de práticas e manifestações religiosas públicas, na profanação de objetos e lugares de culto ou na forma de preconceitos culturais contra grupos religiosos. Ela também pode aparecer na proscrição e repressão oficial à liberdade religiosa pelo Estado, na prisão arbitrária de líderes religiosos, no sequestro de bens de comunidades religiosas e até mesmo na negação de direitos civis aos praticantes de determinada religião, como se fossem cidadãos de categoria inferior, ou até sem direitos.

As discriminações e perseguições religiosas violentas, não apenas contra cristãos, foram causa de imensos sofrimentos ao longo da História e já seria hora de ter posto um fim a essa forma de barbárie. Mas falta muito para colocar efetivamente em prática o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (1948): “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular”.

Também o Pacto de São José (Costa Rica, 1969), da Conferência Interamericana sobre Direitos Humanos, prescreve que “toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião; de conservar sua religião e suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião e suas crenças, individual ou coletivamente, em privado e em público” (artigo 12).

A posição da Igreja Católica sobre a liberdade religiosa foi bem definida no Concílio Vaticano II (1962-1965), na Declaração Dignitatis humanae: “A pessoa humana tem o direito à liberdade religiosa: todas as pessoas devem ser imunes de coação, tanto por pessoas particulares quanto de grupos sociais e de qualquer poder humano, de tal sorte que, em assuntos religiosos, ninguém seja obrigado a agir contra a sua consciência nem impedido de agir de acordo com ela, em particular e em público, só ou associado com outrem, dentro dos devidos limites” (DH 2). A liberdade religiosa funda-se na própria dignidade da pessoa humana.

Uma declaração do Conselho Mundial de Igrejas Cristãs (CMI) destaca que a religião não deve ser imposta a ninguém, pois é uma resposta livre do homem a Deus, que não força ninguém a corresponder ao seu amor (Assembleia do CMI de Nova Délhi, 1961). Infelizmente, em pleno século 21, a questão da liberdade religiosa segue sendo um desafio enorme, tanto pela negação desse direito fundamental quanto pela imposição forçada de formas de crer.

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo

Publicado originalmente no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 8 de julho de 2023

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