Aborto sim. Aborto não
No Supremo Tribunal Federal (STF) está em pauta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 442/2017, que pleiteia o aborto legal até a 12.ª semana de gestação. Em palavras pobres, os ministros do STF deverão se pronunciar se até o 3.º mês da gestação de um ser humano a Constituição (“preceito fundamental”) pode ser descumprida. A questão levanta novamente o debate em torno da delicada questão do aborto, que não tem conseguido passar pela aprovação do Congresso Nacional e, agora, demanda uma decisão complexa dos ministros da Suprema Corte.
Há quem afirme que até o 3.º mês de gestação ainda não se pode afirmar que há um ser humano vivo, o que só seria possível a partir da formação do sistema nervoso central. Portanto, antes disso, o feto seria comparável ao adulto em estado vegetativo, que não tem reações neurológicas, não sente nem responde a estímulos. Minha consideração é se, do ponto de vista da ciência, isso pode ser afirmado a respeito do feto até o 3.º mês de gestação.
Há uma diferença fundamental entre um feto em desenvolvimento e um adulto em estado vegetativo. Neste, trata-se da vida em fase terminal, enquanto no feto a vida está num desenvolvimento ordenado em vista do amadurecimento da gestação e do nascimento. Fazer um aborto até a 12.ª semana de gestação não é o mesmo que desligar os aparelhos que mantêm alguém vivo mecanicamente.
De maneira até mais radical, há quem diga que até a 12.ª semana de gestação ainda não se pode falar propriamente de um ser humano, mas de um conjunto de células e funções que, depois, podem se tornar um ser humano. Aqui, entramos na complexa discussão antropológica sobre o início do ser humano.
Deixando de lado considerações acadêmicas, penso que a questão possa ser resolvida de maneira adequada a partir do bom senso e da ciência. Por que duvidar de que, quando se unem óvulo e espermatozoide e se inicia a multiplicação celular, já se tem o início de um novo ser humano? Não vale o mesmo quando se trata de outros mamíferos? Não é minimamente razoável pensar que, até certo momento da gestação, haveria no útero da mulher algo indefinido que, só depois, viria a se definir como um ser humano. Eis porque, também desde o primeiro instante da existência de um novo ser humano, este deve ser respeitado, protegido, especialmente quanto ao seu direito de existir e de viver.
O aborto seria um direito e uma livre escolha da mulher, única senhora do seu corpo? Esse argumento não leva em conta que, na gravidez, não há apenas o corpo da mulher, mas também o de um outro, que está abrigado e sendo formado dentro dela. O embrião, feto ou bebê, embora dependa inteiramente do corpo da mãe que o gera, não é parte do corpo dela, como são seus braços ou seu fígado. Portanto, na decisão de abortar, é preciso levar em conta este outro e o primeiro de todos os direitos dele: o de existir e de viver. Sendo este outro ainda frágil e indefeso, ele deve ser tutelado pela mãe e também pela sociedade, por meio de leis do Estado, sem relegar essa decisão ao arbítrio individual de quem quer que seja.
Uma gravidez indesejada dá o direito ao aborto? Muitas gestações iniciam sem terem sido planejadas ou desejadas e a mulher pode enfrentar situações difíceis. No entanto, a gravidez é resultante de um curso da natureza, que pode ser controlado mediante a vontade e a vida regrada. Mas o recurso ao aborto, neste caso, é sobrepor a vontade de alguém adulto sobre o direito à vida de um inocente e indefeso. Não é boa solução resolver um problema criando um outro ainda maior.
A gravidez indesejada pode ser prevenida. Mas a perda da vida de outro ser humano é irreparável. Mesmo não planejado ou desejado no início, o filho é sempre um bem em si mesmo e pode ser acolhido e amado. Além disso, se os bebês indesejados puderem ser eliminados, o que impede, nessa mesma linha de raciocínio, concluir que certas pessoas indesejadas por nós ou pela sociedade também possam ser eliminadas? Alguns regimes autoritários já fizeram isso e merecem a execração geral de quem preza a dignidade da humana condição.
Já existem muitos pobres e famintos pelo mundo e não se deveria fazer nascer ainda mais outros? Sinceramente, seguindo essa lógica, pais pobres não deveriam gerar filhos e pobres não deveriam ter o direito de nascer. Não é preciso argumentar. Aborto é questão de saúde pública? Ora, seria boa política de saúde pública tornar legal a supressão de inocentes e indefesos? Há quem argumente: o aborto já é feito por muitos. Por que não legalizar? Seria bom legalizar o roubo, só porque há muitos ladrões?
O Estado é laico e a questão deve ser tratada sem a interferência da religião? Suponho que o Estado laico se deve pautar por princípios altos de ética e de humanidade. O papa Francisco observou recentemente que o aborto não é, antes de tudo, questão de religião, mas de humanidade. Em todo caso, os religiosos também são cidadãos e têm o direito de se manifestar.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado originalmente no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 14 de outubro de 2023