Dialogar é preciso
O Papa Francisco acaba de fazer uma visita histórica ao Iraque, berço de antigas civilizações e tradições religiosas e culturais relacionadas com a origem das três religiões monoteÃstas: JudaÃsmo, Cristianismo e Islamismo. Lugares como Mesopotâmia, Babilônia, Ur dos Caldeus e NÃnive são mencionados nos relatos bÃblicos e foram palco de momentos épicos da história do povo hebreu.
A região do atual Iraque foi banhada frequentemente com o sangue derramado por guerras, perseguições e repressões violentas. Também a nossa geração é testemunha de mais um longo perÃodo de conflitos absurdos, com imensos sofrimentos suportados por aquele povo. Não raro os conflitos envolveram motivações religiosas e de discriminação étnica e cultural, mas quase sempre estiveram em jogo a disputa de grupos rivais pelo poder e a supremacia. Também as razões geopolÃticas e econômicas, como o interesse pelo petróleo e seus derivados, tiveram peso.
O Cristianismo expandiu-se e floresceu bem cedo na Mesopotâmia, possivelmente ainda na era apostólica. Com o surgimento do Islamismo, a presença cristã foi drasticamente reduzida ao longo dos séculos. Minorias cristãs, no entanto, mantiveram-se no meio de uma imensa maioria muçulmana. Desde a guerra do Golfo Pérsico, nos anos 1980, e, sobretudo, com a guerra dos Estados Unidos contra Saddam Hussein, os cristãos pagaram um preço muito alto por terem sido considerados filo-ocidentais, e ficaram reduzidos mais ainda.
São João Paulo II se opôs energicamente à guerra contra o Iraque, chamando ao diálogo, sem ser ouvido. Recentemente, as minorias cristãs sofreram um novo durÃssimo golpe, infligido pelo Isis, o grupo chamado Estado Islâmico, que pretendia islamizar à força os cristãos. Os mártires cristãos foram numerosos, igrejas destruÃdas, bens expropriados e uma insegurança social sufocante para os cristãos, reduzidos a cerca de 500 mil pessoas, que somente conseguem permanecer lá com a ajuda dos cristãos do mundo inteiro. Há poucas décadas eram dez vezes mais.
Esse foi o contexto da visita histórica de Francisco, que desejou muito ir à quele paÃs para dialogar, confortar e levar esperança. Não houve multidões oceânicas para o acolherem, até porque também lá a pandemia de COVID-19 está espalhada. Além dos lÃderes católicos e de diversos outros grupos cristãos, Francisco encontrou-se com as mais altas autoridades islâmicas locais e do Estado. Havia preocupação quanto à segurança do Papa, que também se dirigiu a Mossul, no norte do paÃs, cidade duramente atingida pelos combates contra o Estado Islâmico. Francisco, porém, não hesitou nem por um instante em encontrar aquela população, para levar-lhe sua palavra de conforto e esperança.
A visita foi orientada pela busca do diálogo e foi isso o que Papa fez o tempo todo nos seus encontros com as autoridades públicas, os religiosos muçulmanos e com lÃderes das comunidades católicas e de outras Igrejas cristãs do PaÃs. Em seus discursos, ele insistiu, em diversos momentos, sobre a necessidade de ouvir o outro com atenção, estender a mão, colaborar, construir pontes, em vez de levantar muros. Nas lacerações vividas por aquele povo, o diálogo pressupõe desarmar os espÃritos, superar medos e mágoas, restabelecer laços de confiança e acreditar na boa vontade do outro. Sem isso é praticamente impossÃvel dialogar.
O diálogo corresponde à natureza do ser humano, que não é completo e fechado em si mesmo, mas aberto ao outro, em quem busca e encontra a sua complementaridade. Escreveu São João Paulo II que o diálogo é etapa obrigatória no caminho da realização humana, tanto do indivÃduo como de cada comunidade – encÃclica Ut unum sint (Para que sejam um), 1995, n.º 28). Diálogo não é o mesmo que confrontação, na qual o objetivo é que haja um vencedor. O diálogo exige reciprocidade e renúncia à vontade de dominar o outro. É preciso passar do antagonismo e de conflito para um terreno comum, onde uma e outra parte se reconhecem como companheiros de caminho.
No diálogo, cada uma das partes deve pressupor a sinceridade da outra parte, para se estabelecer uma base de confiança recÃproca. Dessa maneira, o diálogo respeitoso e franco torna-se partilha de dons e bens, que beneficia e enriquece ambas as partes que dialogam. Ao contrário, o fechamento ao diálogo é empobrecedor e reduz os horizontes da convivência humana, abrindo espaço para o cultivo de ressentimentos e indiferenças.
O diálogo verdadeiro tornou-se um bem escasso, mas precioso, em tempos de polarização ideológica, e não apenas no Iraque ou em paÃses com conflitos armados. Nossa cultura brasileira, geralmente aberta ao diálogo e à convivência acolhedora e pacÃfica, parece ter sido contagiada por um vÃrus perigoso, que torna difÃcil o diálogo sereno e produtivo. O fechamento ao diálogo e o acirramento de preconceitos e discriminações podem predispor a conflitos e atos violentos. Aonde isso pode nos levar? Dialogar é preciso!
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo
Publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 13/03/2021 via arquisp.org.br