Não desvies do pobre o teu olhar
Há sete anos a Igreja Católica comemora o Dia Mundial dos Pobres, sempre no mês de novembro. Instituída pelo papa Francisco, a recorrência tem o objetivo de chamar a atenção para a realidade da pobreza ao nosso redor e, sobretudo, para a situação dos pobres em todo o mundo.
“A pobreza permeia nossas cidades como um rio que cresce cada vez mais, até transbordar, e parece submergir-nos, pois o clamor dos irmãos e irmãs que pedem ajuda, apoio e solidariedade ergue-se cada vez mais forte”, escreveu o papa na mensagem para a comemoração deste ano, no dia 19 de novembro.
Talvez pensemos logo nos moradores de rua e nas pessoas que moram precariamente em casebres improvisados. Mas não são os únicos. Uma multidão enorme de pessoas vive com o mínimo para suprir as necessidades básicas de sua sobrevivência. São os que vivem sem trabalho ou enfrentam a constante precariedade do trabalho; as vítimas do jogo desumano entre o capital e o trabalho, cujo perdedor é sempre o trabalho. Vale lembrar um princípio caro à Doutrina Social da Igreja: “O trabalho é para o homem, e não o homem para o trabalho” (S. João Paulo II, encíclica Laborem Exercens, 1983, n.º 6).
Pobres são todos aqueles que não conseguem acompanhar a lógica da especulação dos preços dos produtos de primeira necessidade e que, cada mês, precisam decidir se pagam o aluguel ou compram comida e remédios. Pobres vivem o flagelo da guerra e precisam deixar tudo para trás, para salvar a vida e os que convivem diariamente com a violência e toda sorte de ameaças. É sabido que as guerras e os conflitos deixam um pesado saldo de sofrimentos e miséria e que o desenvolvimento e a promoção da verdadeira justiça e equidade social só são possíveis com a paz.
Transcorre, neste ano, o 60.º aniversário da encíclica Pacem in Terris, do papa S. João XXIII (1963). Nela, o pontífice expôs o nexo entre a possibilidade da verdadeira paz a e superação da pobreza. O ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida, especialmente à nutrição, vestuário, moradia, repouso, assistência sanitária e aos serviços sociais indispensáveis, como o amparo na doença, invalidez, velhice, desemprego forçado e privação do sustento por circunstâncias alheias à sua vontade” (n.º 11).
É preciso reconhecer que desde que essa encíclica foi escrita muita coisa foi feita em nosso país. E tantas pessoas dedicam-se generosamente aos pobres e excluídos do bem comum. Mas quanto ainda resta por fazer, para que a vida dos pobres melhore! “Vivemos um momento histórico que não favorece a atenção aos mais pobres”, observa Francisco em sua mensagem (n.º 3). O apelo ao bem-estar fala mais alto e acaba se sobrepondo ao grito de quem vive na pobreza. Os parâmetros propostos todos os dias como ideais requerem um poder aquisitivo alto e levam a esquecer as necessidades básicas e mais urgentes dos pobres.
Por isso, além do esforço individual e generoso em assistir os pobres, faz-se necessário “um sério e eficaz esforço político e legislativo” para assegurar o bem comum, a solidariedade social e a subsidiariedade dos cidadãos (n.º 5). As instituições públicas precisam cumprir, da melhor forma possível, o seu dever, especialmente em relação à população que vive em situação de vulnerabilidade social e econômica. De fato, a esmola presta um socorro ocasional e imediato ao pobre, mas não o tira da pobreza. Esta só será vencida mediante uma decidida solidariedade social, a difusão de uma cultura com valores éticos e com políticas sociais adequadas, promovidas pelos governantes.
A atitude menos eficaz, neste caso, seria fechar-se no egoísmo e na insensibilidade, desviando o olhar dos pobres. Francisco toma o título de sua mensagem do texto bíblico do livro de Tobias: “Não desvies do pobre o teu olhar” (Tb 4,7). O velho Tobit, cego e debilitado depois de uma vida dedicada ao bem do próximo, recomenda a Tobias, seu jovem filho: “Lembra-te, filho, do Senhor, nosso Deus, em todos os teus dias, evita o pecado e observa os seus mandamentos. Pratica a justiça todos os dias da tua vida e não andes pelos caminhos da injustiça. Dá esmola, conforme as tuas posses. Nunca afastes de algum pobre o teu olhar e nunca se afastará de ti o olhar de Deus” (Tb 4, 5-7). Essas palavras sábias vão ao ponto da questão da pobreza: a injustiça e a insensibilidade diante da situação dos pobres.
Francisco ainda adverte para a tentação, na abordagem da pobreza, de ficar na mera retórica, transformando a pobreza em discurso ideológico e transformando os pobres em mera questão de estatística (n.º 7). Os pobres são pessoas, têm rosto e histórias pessoais, sentem fome e frio, são nossos irmãos e irmãs, com valores, capacidades e defeitos, como todos. A relação com os pobres não pode permanecer distante e no mundo dos números, das ideias e teorias, mas precisa descer ao envolvimento pessoal. O Dia Mundial dos Pobres nos desafia a olharmos o pobre como pessoas e como irmãos.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo
Publicado originalmente no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 11 de novembro de 2023