Não se perturbe o vosso coração
O evangelista São João apresenta um longo colóquio de Jesus com os apóstolos no contexto da última ceia (cf. Jo 13-17). É o momento das últimas instruções e recomendações e, também, da despedida. Jesus sabia que havia chegado a hora “de passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1) e, por isso, deixou aos seus apóstolos o seu “testamento espiritual”, cheio de ensinamentos fortes sobre sua ligação profunda com os discípulos, sobre seu novo modo de vida e sobre a missão que deverão desempenhar depois dele.
Jesus percebeu a ansiedade deles, que percebiam que o Mestre os iria deixar; por isso, os confortou com a certeza de que não os abandonaria nem os deixaria sozinhos. Prometeu-lhes a assistência constante do Espírito Santo e pacificou seus corações. “Não se perturbe nem se intimide o vosso coração” (Jo 14,27). Perturbação e temor podiam vir por muitos motivos, porém, nesse caso, parece que o medo maior dos discípulos era o de não darem conta da missão sem o Mestre e terem de enfrentar muitas dificuldades.
Com grande probabilidade, quando São João escreveu o seu Evangelho, já havia chegado às comunidades da Igreja nascente o tempo das perseguições e do martírio. Recordar essas palavras de Jesus era também proporcionar conforto e coragem aos cristãos perseguidos e temerosos, expostos a muitas perturbações e confrontados com a tentação de abandonar a fé. Essas palavras do Evangelho também trouxeram conforto e coragem aos cristãos que, em todos os séculos, tiveram de enfrentar perturbações, perseguições e martírios.
Em nossos tempos, os discípulos de Cristo estão sendo novamente confrontados com situações difíceis. Não faltam motivos para perturbações e temores de todo tipo, nem faltam aqueles que causam essas desorientações no seio das comunidades da Igreja. Nada de novo. Há também “profetas da desgraça” que anunciam o fim da Igreja Católica, e não é a primeira vez na História. Mais vezes, houve até quem chegou a estabelecer “prazos” para o fim da Igreja Católica… Outros colocam em dúvida a autoridade do Papa e dos bispos sobre a Igreja e sobre a autenticidade do seu ensinamento sobre questões de fé e moral, arriscando o exercício de um “magistério paralelo” e criando muita perplexidade e confusão no meio do povo, e não apenas dentro da Igreja.
A estes, seria importante lembrar o que escreveram os apóstolos a propósito de falsos pregadores, que começaram a ensinar coisas contrárias ao ensinamento dos próprios apóstolos: “Ficamos sabendo que alguns causaram perturbações com palavras que transtornaram o vosso espírito. Eles não foram enviados por nós” (At 15,24). O pregador que vai com a própria autoridade, e não como um “enviado”, carece de autenticidade e prega a si mesmo. Para ser uma pregação autêntica da fé católica, ela precisa estar em sintonia com o ensinamento dos apóstolos. Uma pregação isolada, subjetiva e dissonante do ensino do Magistério da Igreja, por mais que seja eloquente e aliciadora, não deve ser logo acolhida. A autenticidade da “doutrina dos apóstolos” é confirmada por sua sintonia e comunhão com a palavra do Magistério da Igreja, exercido pelo Papa e pelos bispos em comunhão com ele.
Também podem aparecer, contudo, outros motivos de medo e perturbação, como a insegurança econômica e social, a fragilidade das estruturas sociais e políticas, ou a sua escassa confiabilidade, ou mesmo a constante ameaça da violência difusa, dos problemas da saúde… Então, é preciso que não esqueçamos as palavras de Jesus: “Não se perturbe nem se atemorize o vosso coração” (Jo 14,27)… “Eu estarei sempre com vocês até o fim dos tempos!” (Mt 28,20). Devemos ser testemunhas da fidelidade a Jesus Cristo e da confiança inabalável nas suas promessas. Ao mesmo tempo, somos testemunhas da esperança no mundo, que não necessita de mais perturbações e incertezas, mas de esperança segura.
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 29/05/2019.